A ESTRELA NEGRA
Por Dema de Francisco
Editor da revista Ponto Jovem, autor roteirista, dramaturgo, jornalista e memorialista
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Ás 21h30min na distante noite daquela sexta feira, 13 de agosto de 1965, no Brasil que engatinhava no processo de industrialização com a migração dos trabalhadores do campo para a zona urbana, homens e mulheres, em vilas e cidades, arrastavam apressadamente por ruas descalças suas cadeiras, banquinhos, latões e tudo o que pudesse servir de apoio, postando-se frente às portas e janelas abertas da vizinhança onde disputavam espaço para assistir ao último capítulo de uma telenovela que havia conquistado um milhão e meio de telespectadores de norte a sul do país. A história de O Direito de Nascer, escrita pelo cubano Felix Caignet (1892-1976) e adaptada para a televisão por Thalma de Oliveira (1917-1976) e Teixeira Filho (1922-1984) já tinha sido sucesso estrondoso na forma de radionovela nos anos quarenta e o público, embora conhecedor do enredo , acompanhou com interesse incomum a saga dos personagens Albertinho Limonta e Mamãe Dolores, vividos por Amilton Fernandes (1919-1968) e Isaura Bruno (1926-1977), respectivamente. O sucesso foi tão impactante que nos dois dias seguintes àquela noite de sexta feira, o último capitulo foi reencenado "ao vivo” para um público de dez mil pessoas no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, e depois para um público ainda maior no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, havendo festa de encerramento também no Mineirão, Belo Horizonte.
Os atores da novela viviam dias de glória que pareciam não ter fim. A televisão no Brasil era ainda uma frágil adolescente de quinze anos, aprendendo a dar os primeiros passos na construção de sua história. Tudo era precário e artesanal, menos o talento, a garra, a determinação e a dedicação dos nossos pioneiros. Na trama original, a protagonista da história é a personagem Maria Helena de Juncal, que na versão brasileira para a TV, foi vivida pela grande estrela da época Nathalia Timberg, mas por esses mistérios e desígnios insondáveis do destino, o público acabou se encantando e se identificando com a personagem Mamãe Dolores, vivida de forma magistral por Isaura Bruno que se tornou ainda que involuntariamente a primeira protagonista negra de nossas telenovelas, fato que demorou décadas para ser devidamente registrado e creditado.
Ao apagar das luzes dos cenários e descartadas as folhas datilografadas do capitulo 160 que encerrava a novela, saiam de cena os personagens de ficção e cada um dos atores passou a viver os seus próprios dramas, e estes, ao contrário da trama, não apresentavam finais felizes. Mas aqui, concentro-me em Isaura Bruno, a nossa primeira Estrela Negra que nascida no interior paulista, órfã de pai aos três anos e de mãe aos onze, criada pela avó materna até a morte desta, migrou para a capital ainda jovem à procura de dias melhores. Dormiu em albergues, pensões, bancos de praça, hotéis baratos de frequências duvidosas e jamais desistiu de sonhar com uma vida mais digna. Empregou-se em várias casas como doméstica, até chegar pelas mãos do destino na residência do escritor Orígenes Lessa (1903-1986), autor de O Feijão e o Sonho, onde foi contratada como cozinheira. Novamente, pelo acaso ou pela mão do universo, fez sólida amizade com a empregada da casa vizinha e esta um dia comentou que seu patrão estava procurando uma negra para um pequeno papel em um filme que iria rodar. O patrão da amiga era um dos mais importantes pioneiros das nossas artes, Walter Forster (1917-1996). Ele ficou encantado por Isaura e deu-lhe o papel de Flausina, no filme Luar do Sertão (1949), uma empregada que guardava muitas semelhanças com a Mammy de Hattie McDaniel (1895-1952) no filme E o Vento Levou (1939). A partir de então, Isaura conciliava o trabalho de doméstica com todas as oportunidades que apareciam para exercer o seu oficio de atriz. Fez isso por longos anos até ser contratada, sem registro, sem nada, para viver mais uma empregada, desta vez, a Dolores Limonta na versão para televisão de O Direito de Nascer. Fez dessa oportunidade o seu pulo do gato. E brilhou como nunca.
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Mas a vida é uma caixa de armadilhas e quando menos esperamos, somos surpreendidos por golpes impiedosos que nos afligem sem que saibamos como nos defender. O sucesso alcançado por O Direito de Nascer não foi suficiente para manter Isaura no topo ou pelo menos dar-lhe o conforto de ter contratos de longa duração ou trabalhos contínuos. Os convites rarearam e nos anos seguintes ela fez apenas mais três novelas, até sair de cena para sempre. Incansável que era, voltou à luta e tentou tudo o que pôde. Lançou livros de culinária, vendeu exemplares de porta em porta, foi trabalhar novamente como doméstica e como diarista e nem assim o destino lhe fez o carinho de oferecer-lhe novas oportunidades. Os amigos sumiram. O público agora se encantava por outros rostos e torciam por outros heróis e heroínas. A televisão entrava no frenético ritmo industrial e as pessoas perdiam a identidade tornando-se apenas produtos do veículo. Era a época do milagre brasileiro tão anunciado pelos governos militares. Não havia mais tempo a se “perder” com os dramas pessoais de cada um.
Isaura Bruno jamais perdeu a fibra que tinha, construída em anos de lutas solitárias. Soube digerir a vergonha íntima de após ter sido catapultada à estrela de primeira grandeza, ser lançada novamente com o rosto em terra junto aos mortais, lutando por um pedaço de pão. Tinha a dignidade de uma rainha e peregrinou vendendo doces na Praça da Sé em São Paulo, com a altivez de quem conhece os motivos pelos quais está lutando. Um dia, sem ter onde morar, aceitou o convite da filha adotiva Penha Marise e foi viver com ela em Campinas; onde continuou vendendo seus doces nas praças da cidade. Ninguém mais se lembrava dela. Transitava invisível e desconhecida entre os passantes que olhavam mais para os doces no tabuleiro do que para a conformada vendedora. Cumpria-se o vaticínio de uma das ultimas entrevistas que dera ao Jornal do Brasil, em 24.05.1972 onde dissera. “O negro na tevê nunca passa de papéis secundários. Todos sabem disso. O pior é que alguns colegas, poucos sensatos, disseram que depois de Mamãe Dolores já não haveria outro papel para mim”. Infelizmente, seus colegas tinham razão.
Em primeiro de maio de 1977, aproveitando o feriado do Dia do Trabalho, Isaura saiu para vender seus doces nas ruas e praças de Campinas. Estava na sua lida até que um ataque cardíaco a fez perder os sentidos. Levada a um hospital público, por não portar documentos, foi internada como indigente. No dia seguinte, já identificada, morreu aos sessenta anos de idade.
Nesta semana em que se comemorou os setenta anos da televisão no Brasil e quando tantos e tantos pioneiros simplesmente foram esquecidos ou já não são mais lembrados, escolhi Isaura Bruno para, através dela, homenagear todos aqueles que fizeram e ainda fazem a história da nossa televisão, construída na raça, com o suor, o sangue, o talento, o trabalho, a dedicação e o empenho de gente fantástica como Isaura Bruno, a nossa Estrela Negra de ontem e de hoje, que continua fazendo parte da imensa constelação de astros e estrelas que esse país já produziu.
Bravo!
Muito obrigado queridos pioneiros.
Bravo!
Muito obrigado Isaura Bruno, você ainda é uma estrela! .
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A NEGAÇAO DO BRASIL, trecho do filme de Joel Zito Araujo com as cenas de encerramento da novela,
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NOTA DO EDITOR
Texto originalmente postado no Facebook e editado para o blog com autorização do autor.
Daslan Melo Lima / daslan@terra.com.br /
WhatSapp: (81) 9-9612.0904
PASSARELA CULTURAL, edição número 752, semana de 20 a 26 de setembro de 2020 / Timbaúba, PE, Brasil.
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