Por Daslan Melo Lima
Nos últimos dias de julho de 1955, a
famosa revista O Cruzeiro, a publicação mais lida do Brasil na época, chegava
às bancas com uma tiragem de 630.000 exemplares, trazendo como uma das chamadas
da capa o 36º Congresso Eucarístico Internacional, evento católico realizado no
Rio de Janeiro, e como ilustração o conjunto infantil, também católico,
Canarinhos de Petrópolis. Na secção da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003),
chamada “Última Página”, localizada exatamente na última página de O Cruzeiro, a
sua crônica intitulada Carta a Emília, Miss Brasil, era dedicada à cearense
Emília Barreto Corrêa Lima, Miss Brasil, representante brasileira no Miss
Universo 1955, realizado em Long Beach, concurso vencido pela sueca Hillevi
Rombin (1933-1996).
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Emília Corrêa Lima, Miss Ceará, Miss Brasil, semifinalista no Miss Universo 1955. |
Eu tenho no meu acervo um exemplar
daquela revista e quero compartilhar a relíquia com todos os meus leitores. Abaixo, a crônica de Rachel de
Queiroz, transcrita exatamente como se encontra em O Cruzeiro, de 30/07/1955, respeitando a
ortografia em vigor nos anos cinquenta. O texto é um verdadeiro poema em prosa, lindo, terno, humano, místico, sábio, filosófico... Uma pérola que vale a pena conferir.
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CARTA A EMÍLIA, MISS BRASIL
Rachel De Queiroz
Minha flor:
Quando esta carta sair impressa você
talvez já esteja a caminho da América, para a disputa do grande título. É que
eu ando por longe, metida no sertão da sua e minha terra, o que dificulta a
rapidez das comunicações; mas palavras de amor nunca são demais nem tardias, e
são justamente palavras de muito carinho que lhe posso dizer.
Faz algum tempo que não a vejo. A
última vez foi em sua casa; - você e Iaci, de saída para um cinema, creio, se
entremostraram ràpidamente na porta da sala, para se fazerem apreciar pela
“tia” que chegava de viagem. E reparei logo nessa sua esbelteza de galgo ou de
garça, que é talvez o maior dos seus encantos. Nesta nossa terra de
brevilíneas, você, longilínea perfeita, é uma maravilhosa exceção. Porém, em
lugar da sua beleza e da beleza de sua irmã, igualmente tão linda, o que a
família quis comentar foram os seus triunfos de estudiosa, tão de acôrdo com as
tradições dos Barreto e dos Corrêa Lima; as famílias sofrem essa preocupação de
subestimar a beleza das suas moças. Têm medo de que elas fiquem por demais
vaidosas, que percam o amor da virtude e dos estudos, pelo amor da bonita cara
e do bonito corpo.
Felizmente, minha querida Emília,
você não se deixou iludir pelas boas intenções dos de casa, e ao invés de
tratar apenas de estudar, não se despreocupou de ser bonita. Teve a
inteligência de dar valor a esse dom sobre todos os dons, que é a beleza. Sim,
não acredite nunca quando lhe disserem que beleza é um acidente que não tem
valor, que não dá felicidade, que mais vale inteligência, etc. Isso são chavões
nascidos do desejo e da necessidade de consolar os feios. Uma bela mulher é uma
perfeita obra de arte. Seja bonita com orgulho, com tranqüilidade, com
segurança; cuide bem do seu rosto e do seu corpo, pois nada neste mundo vale
mais do que a beleza. Quando eu tinha a sua idade, recebi um prêmio literário.
(Recordo isso porque seu pai, então no Rio, no entusiasmo fraternal pela
estreante, foi o meu melhor eleitor.) Pois, querida, não êsse modesto prêmio,
destinado a estimular uma principiante, mas todos os prêmios literários deste
mundo, até o Nobel, eu o daria de bom-gôsto para ser bonita como você o é.
Eles dizem que não há mérito em ser
bonita. Claro. Como não há mérito em ser inteligente, nem em ter bom caráter,
nem em ser um gênio musical, nem um maravilhoso poeta. Manuel Bandeira, que foi
um dos seus juízes, já nasceu com o dom divino; e com êle nasceu o seu poeta
predileto, Carlos Drummond de Andrade. Tudo são dons, dons gratuitos, que se
recebem da fonte de todos os dons. Valerão eles menos por isso? E a beleza,
entre os dons, é o mais alto de todos: o maior elogio que se pode fazer a uma
realização, a uma paisagem, a um poema, é dizer que são belos. Por que a beleza
é a coroa que os completa. Nem a virtude se concebe sem beleza, nem a
divindade. Não só os deuses dos pagões eram belos: a própria Igreja, dentro da
sua austeridade, pinta os santos formosos. Alguém poderia imaginar Nossa
Senhora feia? E Cristo, se viesse ao mundo na figura de um homem malformado,
não seria até uma profanação? Vi outro dia o retrato autêntico de Santa
Teresinha no seu leito de morte: era uma mulher de feições severas, nariz
forte, rosto descarnado e precocemente envelhecido. Mas a agiografia oficial
jamais permitiu que a reproduzissem assim e, em todas as imagens do culto,
Santa Teresinha nos é apresentada como uma jovem de angélica beleza. (E digo
angélica, porque os anjos são também padrões de formosura). Por que isso? Não
será por frivolidade que a Igreja assim se empenha em tornar seus santos; será
antes porque, com o seu profundo conhecimento do coração humano, sabe que a
beleza atrai o amor e a devoção. Porque a beleza é como um sêlo de Deus.
Filha de uma mulher muito linda, sempre
adorei a beleza de minha mãe. Contam os de casa que um dia – eu teria uns seis
anos - ela me pôs de castigo por motivo que me pareceu imerecido. E ao jantar,
horas depois, ainda zangada com a injustiça, eu disse, encarando-a: “Só fico
morando aqui porque você é bonita. Se você fosse uma mãe feia, eu fugia de
casa”. Ela era também muito inteligente mas, agora que a perdi, o que mais
lembro da infância, da mocidade, de todos os tempos em que vivemos juntas, é
aquêle rosto formoso, que enchia a nossa casa como uma luz. E ao escrever estas
palavras, sinto uma saudade tão grande, parece que uma coisa rebenta dentro do
meu peito, e talvez eu não a tivesse amado tanto se ela não fosse tão linda.
Nós nos orgulhávamos daquela beleza como de um tesouro de família, e a condição
de seus filhos nos parecia um privilégio. Para nós era uma rainha.
Você foi escolhida a mulher mais bela
do Brasil. É um grande título, não acredite em quem lhe deprecie o valor, nunca
desdenhe o seu dom maravilhoso. Todos lhe queremos bem por isso, lhe somos
gratos por ter nascido e se criado tão bonita, nos orgulhamos de você. Se na
América não lhe derem o título máximo, é porque os cegos são êles. Não viu que
no ano passado, em lugar da nossa radiante Martha Rocha, prefeririam aquela
pequena escocesa de lábios finos?
Aqui ficamos, numa ansiosa torcida.
Mas, volte você ou não com a faixa atribuída a Miss Universo, de qualquer forma
será a nossa Miss; a única que nos agrada e igualmente nos encanta, Emília
Barreto Corrêa Lima, a Miss Maguari, a Miss Ceará, a Miss Brasil.
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Sem prejuízo da essência do primoroso
texto de Rachel de Queiroz, desejo fazer duas pequenas correções na crônica. Manuel
Bandeira (1886-1968) foi jurado do Miss Brasil em 1954 e não em 1955, enquanto Martha Rocha
perdeu o título para Miriam Stevenson, norte-americana e não escocesa.
Emília Corrêa Lima, Miss Brasil 1955, na capa da revista Manchete.
Emília Barreto Corrêa Lima é um nome
que orgulha a memória do concurso Miss Brasil. Reinou com classe, elegância, e
após o reinado casou, teve filhos, netos, e hoje é uma tranquila viúva que mora no Rio
de Janeiro.
Neste outono de 2013 que teve início há poucos dias, gostaria
que todas as aspirantes aos tronos dos cobiçados reinados da beleza brasileira
e seus coordenadores mergulhassem nesta Carta a Emília e refletissem nas sábias
palavras de Rachel de Queiroz, “porque a beleza é como um selo de Deus.”
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