Daslan Melo Lima
No dia 13 de outubro de 2009, dediquei
a Sessão Nostalgia a Sônia Regina Schuller, um ícone dos anos sessenta, uma deusa que
ficou na memória dos meus sonhos de adolescente, Sereia das Praias Cariocas
1965, Miss Clube Caça e Pesca e vice-Miss Guanabara 1965, http://passarelacultural.blogspot.com.br/2009/10/sessao-nostalgia-sonia-regina-schuller.html.
Na quarta-feira, 26/06/2013, recebi uma
ligação da jornalista Cleo Guimarães , do jornal O Globo, que tinha lido minha crônica e queria saber mais sobre as minhas impressões sobre a vice-Miss Guanabara 1965. Falei do sorriso contagiante daquela jovem ensolarada e disse que ela passava um ar de jovem independente, atual, focada numa carreira
profissional, diferente da menina romântica da época. Acrescenti que talvez isso tenha tirado dela o primeiro lugar, afinal estávamos no meio da
década dos anos sessenta. Entre a meiguice de Maria Raquel Helena de Andrade, Miss Botafogo, e
a sensualidade ensolarada de Sônia Regina Schuller, Miss Caça e Pesca, ambas aplaudidíssimas, a
comissão julgadora optou pela primeira.
Não perguntei à jornalista qual seria a natureza da reportagem que ela faria. Pensei imediatamente que se trataria de um tributo à vice-Miss Guanabra 1965, decorrente de sua posição de destaque na sociedade carioca. Estou formatando esta matéria na noite do
domingo, 30/06, quando na rua muita gente celebra a vitória da seleção brasileira de futebol na Copa das Confederações. Acabei de ler a matéria da Cleo no jornal O Globo, abaixo transcrita, e minh'alma está chorando. Leiam e entendam o porquê.
-------------------------
-------------------------
A SEREIA PAROU DE SORRIR
Jornal O Globo, Rio de Janeiro, domingo, 30/06/2013.
Reportagem de Cleo Guimarães, com Maria Fortuna, Isabela Bastos e Adalberto
Neto.
Maio
de 1965. Vinte e cinco mil pessoas lotavam o Maracanãzinho para acompanhar a
disputa pelo título de Miss Estado da Guanabara. Vera Lucia Couto, Miss 1964,
esperava a decisão dos 11 jurados para passar a faixa à sua sucessora. Duas
louras ainda estavam no páreo: Maria Raquel de Andrade, representando o
Botafogo, e Sonia Schuller, do Clube Caça e Pesca. Quando Sonia começou a desfilar, a plateia
veio abaixo. “Ela era ensolarada, cheia de energia e tinha um sorriso lindo”, lembra
o advogado Daslan Mello Lima, criador de um blog sobre misses. “Foi um frisson
incrível quando essa moça apareceu no palco”, lembra Vera Lucia Couto, hoje uma
funcionária da Riotur. Sonia acabou não levando o título, mas, segundo a
revista “Manchete” da semana seguinte, a catarinense que veio para Rio ainda
criança recebeu “uma das maiores ovações da história do Maracanãzinho”.
Sônia Regina Schuller em 1965, Sereia das Praias Cariocas, Miss Caça e Pesca e vice-Miss Guanabara, ao lado de Maria Raquel Helena de Andrade, Miss Botafogo-Miss Guanabara-Miss Brasil.
Sônia Regina Schuller em 2013, mendiga pelas ruas de Ipanema, Rio de Janeiro.
|
Quarenta e oito anos
depois, não ficou nada daquele sorriso que encantou Daslan e a multidão no
ginásio. Sem nenhum dente na arcada superior e com a inferior em frangalhos,
Sonia tem dificuldades até para comer o pastel chinês que o dono de um bar no
Jardim de Alah dá a ela todos os dias. O salgado costuma ser sua única
refeição. A ex-vicecampeã do Miss Guanabara e Sereia das Praias Cariocas de
1965 virou uma pedinte nas ruas de Ipanema, bairro onde mora. “Sonia sofre de esquizofrenia”, informa seu
irmão, Cláudio Schuller. Ele conta que “a desgraça da vida dela começou em
1986”, depois que uma moto a atropelou, perto da Praça General Osório. Sonia
atravessava a Rua Prudente de Morais, na esquina com a Teixeira de Melo, quando
um motoqueiro ultrapassou um ônibus parado e a acertou em cheio. “Naquele dia,
ela perdeu os dentes e a autoestima”, diz Cláudio.
Sônia Regina Schuller, vice-Miss Guanabara 1965, na capa da revista Manchete, ao lado de Vera Lúcia Couto Santos, Miss Guanabara 1964, e Maria Raquel Helena de Andrade, Miss Guanabara 1965.
|
Filho mais velho da
ex-miss, Bruno, de 46 anos, confirma o baque. “Dali pra frente tudo desandou.”
Bruno, que há 19 anos mora em Curitiba, é fruto do curto relacionamento de
Sonia com Sergio Petezzoni, um dos fundadores do Clube dos Cafajestes, de
Copacabana. Nasceu e foi criado no apartamento 404 do prédio número 42 da Rua
Barão da Torre, Ipanema, onde vivia com a mãe e a avó, a fisioterapeuta Antonia
Schuller. No último andar fica a famosa cobertura de Rubem Braga — que Sonia
conhece bem. Ela e Rubem tiveram um namorico. “Era uma admiração mútua, ela
vivia na casa dele”, conta Cláudio. “Eu ia lá para ler jornal, pegar uns
livros”, conta a ex-Sereia, que, num batepapo na Visconde de Pirajá (seu
habitat), alterna momentos de extrema lucidez com comentários que fazem pouco
sentido e incluem ciborgues, androides e assuntos como “uma nova tecnologia que
suga a energia e te deixa seca como uma ameixa”.
Ex-aluna do colégio N. Sra.
Auxiliadora, na Tijuca, e do Melo e Souza, em Ipanema, Sonia não fez faculdade.
“Achei que esse negócio de sereia era suficiente”, diz, coçando o dedão do pé
esquerdo, com unhas enormes e empretecidas. “Minha mãe também achava. Mas
olhaí, virei uma sereia desdentada.”
Sentada na mureta da Praça
Nossa Senhora da Paz, Sonia pede uma pausa na conversa para acender um
Marlboro. No dedo indicador da mão direita há um anel igualzinho ao que Kate
Middleton usou no noivado com o príncipe William, aquele mesmo anel que era de Lady
Di. “É bijouteria, claro”, esclarece. O cigarro, ela conta, é sua perdição. É
por ele que Sonia sai de casa todos os dias. Vai para as ruas pedir dinheiro
para comprar pelo menos um maço. A abordagem é direta, sem rodeios. Não fala
que está com fome, não faz drama. “Oi, pode me dar um real?”. Também não conta
que é para comprar cigarro. “Claro que não. É uma questão de ética. Peço um real e vou
juntando. Quando consigo comprar um maço, volto para casa”. Num desses dias,
ela foi até o Leblon. Parou em frente à Padaria Rio-Lisboa e pediu dinheiro a
um taxista. No balcão, seu irmão, Cláudio, tomava café e fingiu que não a
conhecia. “Fiquei constrangido”, diz. Numa outra vez, Cláudio, que mora em
Friburgo e vem ao Rio com frequência, estava no supermercado Zona Sul e a viu,
também na porta, (“ela não entra nos lugares, fica só na porta”) falando
sozinha. “Me senti mal, claro. Mas a chamei de volta para casa.” É ele também
quem paga o condomínio do apartamento.
A derrocada da ex-Sereia
começou mesmo quando ela perdeu o emprego de executiva de marketing no
BarraShopping, no início dos anos 80, pouco depois da morte do pai. “Lembro
dela nesta época do shopping, linda, saindo de carro, salto agulha e tailleur”,
diz o vizinho Mario Vicenzio Cardillo. Desempregada, Sonia passava temporadas
entre Mirantão, em Visconde de Mauá, e Maricá, na Região dos Lagos. Voltava
para o apartamento da Barão da Torre com frequência, mas gostava de ficar
nessas cidades com seus bichos. A casa de Ipanema chegou a ter quase 50
cachorros, a maioria da raça pointer. E também gatos, muitos gatos. “Eu ia à
feira e voltava com dois baldes de cabeça de peixe para dar para eles”, lembra
Cláudio.
A família reparou que alguma coisa não
estava bem quando Sonia passou a falar sozinha. Fazia isso com frequência.
Também começou a riscar as paredes com carvão. Chegava em casa com cabos de
vassoura e sacolas cheias de lixo recolhido na rua. Foi com esse pano de fundo,
bem nessa fase sinistra, que a moto a atropelou. “Foi demais para ela”, diz
Mario, o vizinho e fã, que mora no primeiro andar. Ele, que aos 7 anos foi com
a mãe ao Maracanãzinho torcer por Sonia no concurso de Miss, não acreditava no
que via. “Ela estava toda quebrada, sem os dentes, irreconhecível.” Sonia
chegou a botar uma prótese na arcada superior, mas anos depois tirou.
No final dos anos 90, ela chegou a passar
duas semanas internada no Instituto Pinel, onde foi diagnosticada a
esquizofrenia. Como não tomou os remédios prescritos, voltou à estaca zero.
Desde então, vive de caminhar, em andrajos, pelas ruas de Ipanema, em busca de
dinheiro para o cigarro. Faz colagens com papéis e revistas que recolhe nos
lixos e quer publicar um livro. “Mas sem ninguém dizer como tem que ser. Livro
artesanal mesmo.”
Quem a conhece diz que Sonia piorou ainda
mais desde que a mãe morreu, há dois anos. Ela estaria mais triste, ficando
mais tempo fechada no apartamento, entulhado de coisas que pega na rua. Sonia
usa o elevador e a entrada de serviço do prédio onde mora com o filho mais
novo, o estudante de Direito Igor, nascido um ano depois do acidente. A ex-Sereia das praias cariocas só dorme na
cama de massagem da mãe, talvez para tentar manter algum contato com ela.
Perguntada sobre o que a deixaria feliz, nem pensa duas vezes. “Meu sonho
dourado é um empadão de camarão com chopinho bem gelado.”
------------------------------
EPÍLOGO
Timbaúba, Pernambuco, última noite de junho de 2013. O pessoal lá fora vibra com a vitória da seleção brasileira na final da Copa das Confederações. Daqui a pouco, encerrando os festejos juninos timbaubenses, haverá um show da banda Chiclete com Banana.
Minh'alma está indiferente a este clima de festa. Não tenho culpa se sou um sentimental incorrigível. Mergulhado nos mistérios da vida e da morte, o menino que um dia eu fui está triste, muito triste. Sônia Regina Schuller, a sereia dos meus sonhos de adolescente, parou de sorrir.
Timbaúba, Pernambuco, última noite de junho de 2013. O pessoal lá fora vibra com a vitória da seleção brasileira na final da Copa das Confederações. Daqui a pouco, encerrando os festejos juninos timbaubenses, haverá um show da banda Chiclete com Banana.
Minh'alma está indiferente a este clima de festa. Não tenho culpa se sou um sentimental incorrigível. Mergulhado nos mistérios da vida e da morte, o menino que um dia eu fui está triste, muito triste. Sônia Regina Schuller, a sereia dos meus sonhos de adolescente, parou de sorrir.
*****